A volta de D. Quixote
G.K. Chesterton: o mais clássico dos modernos e
o mais moderno dos clássicos
Por Henrique Elfes [1]
[1] Publicado originalmente com o título de A volta de Don Quixote (com perfil de Sancho Pança): G.K. Chesterton em Dicta&Contradicta n. o5, IFE — Instituto de Formação e Educação, São Paulo, junho de 2010, págs. 74–88. Esta é a 2ª. ed. revista.
O alegre jornalista de Fleet Street
Para começarmos este perfil de Gilbert Keith Chesterton à maneira chestertoniana, poderíamos dizer que poucos autores tiveram a sua grandeza tão obscurecida pela fama como ele.
Quem só leu dele as inevitáveis citações de agenda, costuma comentar que foi um humorista genial e o “príncipe dos paradoxos”. Não há quem não conheça três ou quatro “paradoxos” seus: aquele da tradição como democracia dos mortos, aquele do louco que perdeu tudo menos a razão, e aquele, como era mesmo, do… do…, bem, deixe para lá.
E não é esse o único rótulo. Certo jornalista contemporâneo seu perguntava-se se estaria diante “do mais empoeirado dos conservadores ou do mais amalucado dos revolucionários”. Outras opções são “racionalista intransigente”, “religioso fanático”, “partidário da Idade Média e dos pré-rafaelitas”. E os panegiristas, por sua vez, costumam abundar em expressões como esta: “G.K. Chesterton foi o melhor escritor do século XX. […] E a razão pela qual foi o maior escritor do século XX é que foi também o maior pensador do século XX”.
Essas etiquetas têm a grande vantagem de permitir que brilhe o nosso conhecimento de um autor sem que tenhamos de lê-lo e, imagine só, de pensar sobre o que diz. O inconveniente é que, como na parábola dos cegos e do elefante, correm o risco de nos dizer tudo sobre o que ele não é. Mas, se Chesterton não é nenhuma dessas coisas, o que, ou quem, é?
Nosso amigo de fato tem muito de elefantino, a começar pelo porte físico (altura de 1,93 m e peso de uns 130 kg). Não consigo resistir à tentação de citar aqui um episódio, embora só conte para ele com a vilipendiada autoridade da Wikipedia. Ao encontrar-se certa vez com George Bernard Shaw, vegetariano esquelético, teria comentado: “Ao vê-lo, qualquer um pensaria que há uma fome na Inglaterra”; e Shaw: “Ao vê-lo, qualquer um pensaria que foi você quem a provocou”.
Mas Chesterton é elefantino sobretudo pelo número de obras que escreveu — mais de 4.000 artigos de jornal, cerca de 100 livros de ensaios mais ou menos longos, 5 romances, uns 200 contos (entre os quais as conhecidíssimas séries policiais do pe. Brown), 5 peças de teatro, uns 200 prefácios e outras contribuições diversas para livros de terceiros, além de centenas de poemas [1]. No meio de tudo isso, ainda encontrou tempo para escrever e ilustrar alguns livros para crianças; crianças concretas, filhas de amigos e conhecidos, não os alvos genéricos da literatura infantil. As Obras completas que vêm sendo lançadas pela Ignatius Press andam pelo volume XXXVII (umas 600 páginas por volume, numa edição muito bem cuidada, com prefácios e notas), e não sei se já as deram por terminadas. Enfim, uma brutalidade.
Embora tenha escrito de maneira divertida e original sobre quase tudo, do queijo à teologia, passando por uma infinidade de temas de arte e estética, história, política e organização social, ética, metafísica, teoria do conhecimento…, nunca quis definir-se como literato, filósofo ou pensador, mas apenas como um “jolly journalist”, um “alegre jornalista”.
Era inglês e londrino até a medula. O seu habitat natural era Fleet Street, a rua dos grandes jornais britânicos, onde podia ser visto do meio-dia ao meio da noite, sentado em algum pub com uma cerveja ao lado, escrevendo sobre uma folha de papel de embrulho um artigo atrasado que assinava como “G.K.C.” — quando não se esquecia de assinar –; e, à medida que a sua fama aumentava, cercado por jornalistas e escritores e amigos em geral.
Suspeito de que a influência que exerceu sobre a literatura e o pensamento ingleses, americanos e internacionais de começos do século XX para cá é muito maior do que geralmente se propaga. Gente tão díspar como Evelyn Waugh, Orson Welles, Gandhi, Graham Greene, Hemingway, Marshall McLuhan, Dorothy Sayers, W.H. Auden, Jorge Luis Borges, C.S. Lewis, Gabriel García Márquez, E.F. Schumacher, Peter Kreeft, além do etc., confessam a sua dívida para com ele — embora em alguns casos isso talvez signifique que a pessoa não compreendeu muita coisa… Mesmo assim, ainda é relativamente pouco conhecido no Brasil: de toda aquela profusão antes citada, as suas obras mais lidas são os contos policiais do pe. Brown, que escrevia quando as finanças apertavam, e o romance O homem que era Quinta-feira (The Man Who was Thursday, 1908).
Conta um jornalista americano que foi visitá-lo: “Epigramas, paradoxos, trocadilhos, episódios, caracterizações, metáforas caíam dos seus lábios em tal profusão que eu, que conhecia o valor de mercado dessas jóias verbais, me senti nervoso como um joalheiro que visse romper-se o colar de pérolas de uma senhora: queria que parasse de falar enquanto eu me punha de joelhos para recolhê-las. Mas não lhe importava desperdiçar idéias geniais comigo, porque havia tantas mais no mesmo lugar de onde tinham vindo estas” (Slosson).
Esse jorro de genialidade despretensiosa é a primeira coisa que impacta quem vai lê-lo, e torna a sua leitura uma delícia e ao mesmo tempo um tormento, especialmente no original. Delícia, porque, são raríssimos os autores que tocam o violino da linguagem com tanta maestria. E tormento, porque sempre se tem a impressão de que não se conseguiu pegar tudo; e, para os que têm pendores literários, a impressão um tanto deprimente de que nunca se conseguirá escrever assim.
Quem é esse tal de G.K.C.?
Curiosamente, a biografia de Chesterton cabe em um parágrafo. Nasceu a 29 de maio de 1874 no coração de Londres, no bairro de Kensington. Estudou Artes e Literatura, mas não se formou em nenhum dos dois cursos. Em 1899, envolveu-se na controvérsia sobre a guerra dos Boers e o imperialismo; como conseqüência, “na primavera de 1900 todo o mundo estava perguntando a todo o mundo: ‘Quem é esse tal de G.K.C.?’” (Cecil). No ano seguinte, casou-se com Frances Blogg, a quem ainda dedicava poemas de amor aos sessenta anos, e lançou o seu primeiro livro, a coletânea de artigos The Defendant; a partir daí, passaria a publicar regularmente um ou dois livros por ano. Em 1918, assumiu a editoria do semanário The New Witness, do seu irmão Cecil, que morreu como soldado na frente francesa; mais tarde, por questões financeiras, transformaria essa publicação no G.K.’s Weekly. Em 1922, entrou para a Igreja Católica; era o final e o cume do seu processo de amadurecimento interior, que o tinha levado do protestantismo unitarista da infância, passando por um momento de ateísmo, ao anglicanismo e por fim ao catolicismo. Morreu a 14 de junho de 1936, na sua casa de Beaconsfield, nos arredores de Londres.
É curioso que, com uma vida tão singela, as suas biografias constituam uma leitura quase tão agradável quanto os seus escritos. É que aquilo que conta no caso dele não são tanto os acontecimentos ou os dramas externos, mas episódios que revelam uma personalidade extremamente simpática. Um amigo meu gosta de selecionar os autores que vai ler de acordo com o seguinte critério: “Esse seria um cara com quem eu gostaria de tomar um cafezinho?” Pois bem, Chesterton, com a sua phylosophy of beef and beer, é o cara com quem todos nós gostaríamos de tomar, não apenas um cafezinho, mas uma demorada cerveja.
O melhor sintoma da sua amabilidade é que conectava imediatamente com crianças; a sua casa vivia cheia dos filhos dos amigos e vizinhos, uma vez que Frances e ele não tiveram filhos. Outro sinal, especialmente impressionante no mundo literário, é que não tinha inimigos, mesmo entre os que lhe eram mais opostos ideologicamente. O caso paradigmático desses inimigos íntimos é George Bernard Shaw, uma espécie de compêndio todas as modas “progressivas” do século: foi sucessivamente socialista, feminista, vegetariano, nietzscheano e darwinista. Chesterton não concordava com uma única idéia dele, mas admirava-o pela bondade de coração. A tal ponto que certo jornalista anônimo sugeria que, no fundo, os dois eram uma só e única pessoa: G.B.S. levantar-se-ia de manhã e, depois de um desjejum de mingau de aveia, sairia de casa; ao entrar num túnel situado a meio caminho entre as duas casas, arrancaria a barba postiça, poria uns enchimentos na barriga, vestiria os enormes sobretudo e chapelão característicos de Gilbert, e emergiria do outro lado do túnel como G.K.C., pronto para ir tomar cerveja com os amigos. O mesmo Shaw chamava-lhe o “gênio colossal”, e escreveu dele depois da morte: “O mundo não está suficientemente agradecido por ter tido um Chesterton”.
Quando G.K.C. morreu, choveram naturalmente as homenagens do mundo literário e político da nação, mas também de chefes de Estado de outros países (Theodore Roosevelt dos EUA, da Irlanda, da Polônia), e até do Papa Pio XI. Mas talvez as reações dos homens comuns sejam mais eloquentes quando se trata de avaliar até onde um escritor realmente chegou aos corações dos seus leitores. Como o amanuense do Times, que exclamou ao saber da sua morte: “Meu Deus! Não é o nosso Chesterton, é?” Ou o policial anônimo que compareceu ao enterro: “Todos teríamos vindo, se tivéssemos conseguido licença. Era um grande homem”.
Talvez a mais significativa de todas seja esta. Um colaborador de Chesterton no G.K.’s Weekly passava por uma barbearia na manhã do enterro quando viu o barbeiro correr ao seu encontro, deixando o cliente ensaboado na cadeira:
– “Só queria dizer-lhe que senti muito ao ouvir o noticiário… Nunca li uma só linha do que ele escreveu, mas ouvi-o falar no rádio. Parecia que estava sentado ali ao meu lado, na barbearia. Era um grande homem, a grand man”. Uma tradução mais precisa seria “um homem grandioso”.
O “gênio colossal”
Como esse nosso amigo barbeiro, repete-se muito o adjetivo “grande” ao falar de G.K.C. Todos os que o conheceram revelam dessa forma a sua admiração diante do desmedido. “A sua mente era oceânica”, diz Belloc; e um jornalista contemporâneo: “Os grandes homens costumam encolher quando nos aproximamos demais deles. Isso não aconteceu com Mr. Chesterton. Era grande demais para caber no seu mundo” (Slosson).
Desde pequeno, Gilbert gostava de pensar em voz alta e, aos seis anos, quando Cecil nasceu, exclamou: “Agora sempre terei uma audiência”. A profecia não se realizou, pois o irmão se empenhou em contradizê-lo desde o primeiro momento. Os dois debatiam sempre, mas sem nunca brigar. Uma dessas discussões chegou a durar quarenta e oito horas ininterruptas, atravessando as refeições da família e duas noites.
Isso o treinou na dialética e marcou de maneira definitiva o seu estilo. A contradição das ideias, a defesa de uma tese contra outra está presente em tudo o que escreveu, dos ensaios e artigos às obras de ficção. É típico dele avançar no texto de antítese em antítese, pondo em combate as diversas posições e para, por fim, resumir tudo numa fórmula brilhante (o tal “paradoxo”).
Mas, se “acorda continuamente o leitor com o choque da surpresa e as suas páginas transbordam de epigramas […], nem uma nem os outros são o coração do seu estilo. O coração do seu estilo é a lucidez, produzida por uma completa exatidão nas definições” (Belloc). De fato, muitos dos seus “paradoxos” são na verdade definições, exprimem intelecções diretas e até evidentes. Aí está talvez — mais um “paradoxo” fático — o principal motivo pelo qual muitos encontram dificuldade para lê-lo: “A clareza parece uma nuvem de confusão para aqueles que vivem mergulhados numa confusão duplamente confusa” (confounded, que tem o duplo sentido de “confuso” e “maldito”; GK, 29.03.30).
Graças a essa lucidez, Chesterton enxerga as diversas possibilidades da razão e tem ao mesmo tempo aguda consciência dos seus limites. Isto fica muito claro no romance A esfera e a cruz, de 1909 (The Ball and the Cross; ball, aqui, é o globo terrestre, a bola mundi dos imperadores medievais). Um católico e um ateu tentam resolver o conflito entre as suas posições intrinsecamente irredutíveis por meio de um leal confronto à espada; os dois são personagens principais, pois representam dois aspectos opostos da mente chestertoniana. Depois de serem impedidos de lutar, quer pela polícia, quer por diversas outras circunstâncias, o único resultado que ambos conseguem é irem parar num hospício (clássica imago mundi), dirigido pelo “Professor Lúcifer”.
O desenlace se dá à maneira apocalíptica, por meio da figura de um velhíssimo monge reduzido à infância de espírito — o contemplativo, imagem por antonomásia do poeta. Se os racionalistas tentam “meter os céus na cabeça, com o que a sua cabeça acaba por rachar”, diz Gilbert no Ortodoxia, o poeta “só deseja ter a cabeça nos céus”. Ou seja, quer contemplar aquilo para que a razão aponta, mas que ela sozinha é incapaz de abarcar, de compreender, precisando ser completada pela empatia e concretude do amor. A essa “visão” contemplativa, ao mesmo tempo racional e amorosa, Chesterton chama-lhe “poesia”, ou “romantismo” (romance), ou “mística”.
Aqui, onde está o máximo da genialidade chestertoniana, encontram-se também as suas limitações. Tudo o que escreve, das poesias às crônicas de jornal, dos grandes ensaios aos romances, é ao mesmo tempo ensaístico e alegórico, racional e poético. Por isso, quem entra em O homem que era quinta-feira (1908) ou Manalive (1912) esperando encontrar “romances” no sentido moderno, sai desapontado, confuso e sem saber o que pensar. Não há um desenvolvimento temporal coerente, com acontecimentos plausíveis e personagens “tirados da vida real”, mas tipos traçados a grandes pinceladas, em cores vivas, quase caricaturescos, que realizam ações inexplicáveis para a simples lógica, pois na verdade obedecem a “lógicas” mais profundas de simbologia poética. Como em tudo o que escreve, Chesterton tem um soberano desprezo pelos detalhes e pela concordância interna, em favor das grandes imagens.
Vejamos como exemplo o Quinta-feira, que à primeira vista pode parecer uma narrativa de espionagem e contra-espionagem. Até mais ou o menos um quarto do seu comprimento, o romance parece ter a ver com anarquistas — os antecessores dos nossos terroristas modernos –, policiais e infiltração policial. O personagem central é o poeta Gabriel Syme, que tinha sido recrutado pela polícia e agora é levado pelo também poeta e anarquista Gregory a uma reunião do Alto Conselho Anarquista. Acaba eleito para esse conselho sob o codinome de Quinta-feira (os outros membros, já se vê, são designados pelos nomes dos dias da semana).
Mas o subtítulo desse livro é Um pesadelo — porque, a partir do capítulo V, nada é o que parece ser: Syme vai descobrindo que os outros conselheiros, um por um, na verdade não são anarquistas, mas… mas mais do que isto não conto; e o Presidente Domingo, então, fica cada vez mais sobre-humano e aterrorizante. Numa mirabolante perseguição final, Syme fica sabendo que fora Domingo quem o tinha recrutado para a polícia, e não apenas isso: “Vocês terão descoberto a verdade sobre a última árvore e a mais alta das nuvens, diz o Presidente, antes de descobrirem a verdade sobre mim. Entenderão o mar, e eu continuarei um enigma; saberão o que são as estrelas, mas não saberão quem eu sou”…
Noutros lugares, Chesterton tem frases que revelam uma das chaves de leitura desse livro: “Toda a ciência, mesmo a ciência divina, é uma sublime história de detetives. Apenas não se dirige a descobrir por que um homem está morto, mas o segredo mais obscuro de por que está vivo” (The Thing, 1929). E: “O romance policial é todo o romance do homem. Baseia-se no fato de que a moral é a mais oculta e mais ousada das conspirações” (The Defendant, 1901).
O homem que era Quinta-feira, porém, é ainda mais do que uma alegoria sobre o sentido último da vida e do bem humanos: sobrepõem-se neste romance, em sucessivas camadas de sentido, uma história dos grandes confrontos do pensamento moderno, uma investigação sobre a verdade científica e a natureza da criação, uma metáfora da busca de Deus pelo homem, uma meditação sobre o sentido do sofrimento e, por fim, um pageant dos sete dias da Criação.
É claro que, com tudo isso, a obra fica soberanamente bela e rica… e exige do leitor uma cultura soberanamente vasta. Confesso, por exemplo, que levei uns vinte anos para “pescar” alguma coisa: só entendi o Quinta-feira depois de ler o prefácio do matemático(!) Martin Gardner para a edição anotada de 1999 da Ignatius, voltei a entendê-lo ao encontrar alguns contos antigos em que Chesterton tinha feito primeiros esboços do romance, e suspeito que ainda haja muita coisa por compreender… Aqui, tenho de pedir ao leitor que se dê por satisfeito com essas poucas pinceladas que dão um pálido vislumbre da riqueza da mente chestertoniana; quem sabe poderemos voltar em outra ocasião a esse livro com uma análise mais detalhada.
Mas vamos adiante. Cecil dizia no seu artigo que, para Gilbert, “o pensamento e a conduta eram por igual expressões da sua personalidade”. Como já vimos, é impossível sequer fazer uma lista dos temas mais importantes de que tratou; tentemos ir, então, por alguns grandes traços da sua personalidade, que correspondem com bastante nitidez a etapas do seu desenvolvimento e nos darão também uma idéia melhor do seu pensamento.
Infância de espírito
A infância de Chesterton foi uma infância feliz; feliz e prolongada. Talvez por alguma doença genética, levou muitos anos a amadurecer física e emocionalmente, quase até os vinte. Por outro lado, esse desenvolvimento retardado estava aliado a uma enorme precocidade intelectual: aos sete anos, “traduziu” para o inglês moderno (e para as concepções protestantes em voga) os Lays of the Scottish Cavaliers, um conjunto de baladas épicas católicas do escocês W.E. Aytoun.
Freud dizia que, na vida adulta, todos querem retornar à infância. Chesterton, em todo o caso, nunca precisou fazê-lo, porque de certa forma nunca deixou a infância. A sua maturidade e imaturidade simultâneas, peneiradas pela experiência, produziram um temperamento único que perduraria por toda a vida: combinação de imediatismo perceptivo e reflexão, imaginação transbordante e análise racional, simplicidade e riqueza de concepções, inocência e sabedoria.
O seu primeiro grande traço é com certeza o senso permanente de maravilha e deslumbramento perante o mundo. “O que era maravilhoso na infância é que tudo nela era maravilhoso. Não era apenas um mundo cheio de milagres; era um mundo miraculoso” (Autobiography, 1936). Essa característica é, parece-me, a base de todo o bom senso e realismo chestertonianos.
Daí arranca também a sua curiosidade universal, fonte da sua inesgotável capacidade criadora. A infância, diz, “era como cem janelas abertas de todos os lados da cabeça” (Autobiography, 1936). Daí decorre, por exemplo, a sua conclusão — um agudo diagnóstico das causas da limitação intelectual de tantas pessoas — de que “não existe sobre a terra nenhum assunto que seja desinteressante; só podem existir pessoas que não se interessam” (Heretics, 1905).
Outro aspecto poderia ser a sua visão lúdica da vida. A criança pode brincar porque não leva a sério o que faz, e não se leva a sério a si mesma: nada do que faz é definitivo. Essa mesma leveza encontramos em tudo o que Chesterton escreve, porque a última seriedade da vida, para ele, não se encontra na própria vida: “Poder-se-ia argumentar razoavelmente que a verdadeira finalidade de toda a vida humana é a brincadeira. A terra é um jardim de infância; o céu é um playground” (All Things Considered, 1908).
Chesterton trabalhou muito e com muita intensidade, a tal ponto que aos quarenta anos caiu de cama por esgotamento, esteve várias semanas em coma, e levou quase seis meses até recuperar-se. Mas nunca fez da seriedade profissional uma espécie de tensa e cancerosa meta de vida; nunca foi um homem grave, porque a gravidade “é na realidade uma tendência ou lapso natural a levar o próprio eu a sério, por ser essa a coisa mais fácil a fazer. É muito mais fácil escrever um bom editorial para o Times do que uma boa piada para o Punch. Porque a solenidade flui espontaneamente dos homens, ao passo que o riso é uma pirueta. É fácil ser pesado e difícil ser leve. Satanás caiu pela força da gravidade” (Orthodoxy, 1908).
Todas as grandes tradições religiosas, bem como tantos filósofos laicos, coincidem com o cristianismo quando este propõe: “se não vos fizerdes como as crianças, não podereis entrar no reino dos céus”. Até o pobre Nietzsche, num desses vislumbres de gênio em que nega tudo o que pretende ser, descreve as fases da vida humana como sendo as do camelo, do leão e da criança. Ou Guimarães Rosa, que no conto O espelho, de Primeiras estórias, põe o surgimento dessa criança interior no final do caminho do conhecimento próprio. Em suma, uns e outros coincidem em reconhecer no espírito de infância o cume em que a pessoa atinge o seu verdadeiro eu.
O espírito de infância chestertoniano não é o da infância primária, larvar e insegura, limitada e imatura, que se define pela indefinição, por ainda não ser ninguém em particular. É o da infância final, recuperada, nítida e firme, definida por se ser alguém com a segurança da plenitude, para além de todas as falsidades e deformações que acumulamos sobre a nossa pessoa real. É uma espécie de inocência recuperada, vizinha da santidade; dessa inocência “que traz em si qualquer coisa de terrível, que a longo prazo faz e refaz os impérios e o mundo” (Preface to the Book of Job, 1916).
Ao contrário da humanidade praticamente inteira, Chesterton parece ter chegado a ela sem esforço. Mas será mesmo?
Átis com a faca sangrenta
Há quem diga que Chesterton não seria um autor capaz de dialogar com o homem moderno, com as suas angústias e neuroses, porque não parece ter sofrido. A sua obra estaria composta apenas de fanfarras e hinos triunfais.
Quem afirma isso, porém, ou não sabe ler, ou pouco conhece dos seres humanos. É evidente que, como bom inglês, ele não faz alarde de sofrimentos e dificuldades interiores; como escrevia numa carta à mãe, “procedemos de uma estranha raça que, quando quer expressar mais, só consegue dizer menos”. Por contraditório que pareça, esse homenzarrão espalhafatoso é dominado pelo pudor quando se trata de falar da sua intimidade. Se quisermos apanhá-lo de guarda baixa, será preciso encontrar expressões indiretas, em palavras postas na boca dos seus personagens.
Provavelmente por causa dessa reserva, também as biografias só costumam comentar brevemente que passou por uma crise muito profunda durante o período em que estudou na escola de artes, entre os vinte e os vinte e dois anos. Os seus desenhos desse tempo — como de hábito, espalhados pelas margens dos seus cadernos de notas ou intrometendo-se nos textos que escrevia — fazem-se soturnos e grotescos. E num dos pouquíssimos trechos verdadeiramente pessoais da Autobiografia (outro paradoxo vital…), comenta: “todo aquele estado de espírito estava dominado e oprimido por uma espécie de congestão imaginativa. Tal como Bunyan se descrevia, no seu período de morbidez, como impelido a blasfemar, eu sentia um impulso esmagador para registrar ou desenhar idéias ou imagens horríveis, mergulhando cada vez mais fundo [nesse estado], como em um cego suicídio espiritual”.
Junto com a crise afetiva, viu-se dominado intelectualmente por uma espécie de ceticismo absoluto. Conservam-se alguns poemas revoltados dessa época, e pelo menos um em que chega ao ateísmo, e ainda mais longe: “Desde então sempre senti que havia qualquer coisa de puído e segunda-categoria nos materialistas e no materialismo. O ateu dizia-me tão pomposamente não acreditar que houvesse algum Deus, e eu tinha momentos em que não acreditava sequer que houvesse o ateu” (Autobiography).
Esse estado de espírito desembocou, como é natural, no pessimismo e no niilismo éticos. “Houve um momento em que atingi aquela condição de anarquia moral em que um homem diz, nas palavras de Wilde, que ‘Átis com a faca sangrenta é melhor que a coisa que eu sou’. Jamais senti a mais leve tentação na direção da loucura peculiar a Wilde [o homossexualismo, como é público e notório]; mas naquela época eu era capaz de imaginar as piores e mais selvagens desproporções e distorções das paixões mais normais”. E mais: “Não me orgulho de conhecer o diabo. Vim a conhecê-lo por minha própria culpa, e depois desenvolvi esse relacionamento seguindo umas linhas que, se as tivesse percorrido até o fim, poderiam me ter levado à demonolatria ou sabe o diabo a que mais” (Autobiography).
Foi no meio dessa vertigem descendente que conheceu, entre os seus colegas da Escola de Artes, um jovem nobre de longo rosto irônico e denso cabelo ruivo, que parecia “uma espécie de super-jóquei, como se algum arcanjo tivesse decidido dedicar-se ao turfe”. Na primeira e última discussão que tiveram “acerca das coisas reais”, Gilbert enxergou com terror e repugnância a imagem daquilo que estava a caminho de ser:
“Tinha uma horrível lucidez do intelecto que me fazia desesperar da sua alma. Um ateu comum e inofensivo teria negado que a religião produzisse humildade, e a humildade uma singela alegria, mas ele aceitava as duas coisas. Só acrescentava: ‘Mas será que eu não encontrarei no mal uma vida própria só dele?, [pois] o que você chama de mal, eu o chamo de bem’. […]
“De lá para cá, ouvi dizer que ele morreu; pode-se dizer, parece-me, que cometeu suicídio; embora o tenha feito com os instrumentos do prazer, não com os da dor. Deus o ajude. Conheço a estrada pela qual seguiu” (‘The Diabolist’, in Cecil).
A conversa foi o ponto de inflexão da crise e talvez o momento decisivo para o amadurecimento espiritual de Chesterton. Em todo o caso, poupou-o de cometer na prática aquilo a que a sua imaginação o empurrava. Não sei se foi exatamente nesse momento ou mais tarde, que chegou a diagnosticar como núcleo da sua doença espiritual a clássica superbia, o orgulho. Anos mais tarde, ele mesmo chegaria a definir essa atitude interior como “a falsificação do fato pela introdução do eu”, a distorção de todo o nosso relacionamento com a realidade, e portanto do nosso papel dentro dela, num nível que pode chegar a ser satânico (lembremo-nos do “Sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”, do Gênesis [Gên 3, 5]).
Seja como for, na obra The Poet and the Lunatics, de 1929, faz a descrição dessa patologia ao mesmo tempo em que aponta o remédio pela boca de um dos seus alter egos, o poeta Gabriel Gale:
“Quem quer que tenha estado no centro do cosmos sabe que é o mesmo que estar no inferno. E há uma única cura para isso. Sim, sei que já se escreveu todo o tipo de tolices e de falsos consolos sobre a causa do mal e sobre a razão da dor no mundo. Deus me livre de integrar eu também essa jaula de macacos papagueantes que são os moralistas, mas não há como escapar de que a verdade é verdadeira, objetiva e experimentalmente verdadeira. Não há cura para o pesadelo da onipotência exceto a dor, porque é a única coisa que um homem sabe que não toleraria se realmente a pudesse controlar. […]
“Não sei se alguma das nossas ações na realidade é algo mais que uma alegoria, não sei se alguma verdade pode ser contada exceto por meio de uma parábola. Havia um homem que se via sentado nos céus, e os seus servos os anjos iam de cá para lá nas suas vestes coloridas de nuvem e chama e do desfile das estações; mas ele estava acima de tudo e o seu rosto parecia encher os céus. E então, Deus que me perdoe a blasfêmia, cravei-o em um madeiro”.
De fato, a partir dessa época Chesterton se “crava no madeiro”; ou, se quiserem, descobre as duas virtudes que Aristóteles não tinha podido enxergar, porque parecem consistir na negação de tudo o que o homem é — embora seja assim só para recuperá-lo realmente humanizado. Refiro-me ao espírito de sacrifício (núcleo da atitude a que chamará fortitude ou ainda strength), isto é, à disposição de sofrer por amor, e à humildade.
É muito significativo que já na primeira obra que publicou, The Defendant (1901), encontremos um ensaio que se chama “Em defesa da humildade”. Num dos primeiros parágrafos, define essa virtude como “a requintada arte de nos reduzirmos a um ponto, não a uma coisa grande ou pequena, mas uma coisa sem tamanho algum, de forma que para ela todas as coisas do universo se tornam o que realmente são: realidades de estatura incomensurável”.
Como Dante que encontra no mais profundo do inferno o caminho para subir aos céus, e de repente vê o que era descida tornar-se ascensão, também Chesterton assiste a uma espécie de reversão de polaridade do universo inteiro. “O mundo está de ponta-cabeça”, diz Gabriel Gale. “Todos nós estamos de ponta-cabeça. Todos somos moscas que correteiam pelo teto, e é uma misericórdia eterna que não caiamos” (The Poet and the Lunatics). E faz essa descoberta, não nel mezzo del cammin di nostra vita, na crise dos meados da vida, mas aos vinte anos e sem Virgílio.
Dispomos de um documento que nos permite assistir a esse processo de reversão interior ao vivo: o caderno de anotações que Chesterton usou de 1895 a 98, e que nunca foi publicado. Maisie Ward faz uma brevíssima seleção dessas notas lançadas sem nenhum tipo de ordem, à medida que brotavam do seu vulcão interior — e nós teremos de contentar-nos aqui com umas poucas amostras apenas.
Sobre o ceticismo que o tinha dominado: “Pode um homem orgulhar-se de perder a sua audição, visão ou o sentido do olfato? Que diremos daquele que se orgulha de começar como um aleijado intelectual e de terminar como um cadáver intelectual?”
Sobre o pessimismo, tema que o ocuparia muito naqueles anos em que Schopenhauer e Nietzsche estavam de moda, precisamos fazer um rodeio. Gilbert logo chegou à consciência de que, sobre “a proposição primária do pessimismo”, tal como sobre “a proposição primária da não-existência da matéria, não se pode argumentar adequadamente” (The Club of Queer Trades, 1905). Porque pessimismo e otimismo, na típica formulação antitética chestertoniana, são atitudes da vontade perante o mundo, não conclusões de um raciocínio. E se os rosados pores-de-sol diante dos quais se extasia o otimista são falsos e teatrais, não menos falsa é a atitude trágica, wagneriana, ocaso-dos-deuses e, em última análise, estéril e esterilizante do pessimista.
Ao pessimista, figura a quem Chesterton assimila todos os fazedores de tragédias, hipercríticos, ressentidos com Deus e o mundo, hipnotizados pelo mal, ululantes, apocalípticos, reclamões da vida, pregadores do ódio e choramingas diversos, só se podem opor, portanto, constatações vitais que dispersem o teatrinho autocentrado da superbia e realizem a redução à lúcida clareza e sanidade mentais do realismo elementar. Isso não significa ignorar o mal, mas apenas não hipertrofiá-lo nem distorcê-lo pelo papel de herói trágico que o orgulho nos atribui. Lemos numa carta dessa época:
“Um cosmos, ao ser um dia censurado por um pessimista, respondeu-lhe: ‘Como pode você, que me critica, fazer para isso uso dos instrumentos que eu lhe emprestei? Permita-me reduzi-lo ao nada, e depois voltaremos a discutir o assunto’. Moral: a universo dado não se olham os dentes”.
Mais umas olhadas ao caderno de notas; sobre esse tema do pessimismo: “Somos todos pó? Mas, que bela coisa é o pó!” “Este mundo redondo pode ser uma bolha de sabão; mas é preciso admitir que reflete algumas cores bem bonitas”. “De que serve a vida, se é passageira? De que serve uma xícara de café, se é passageira? Ha Ha Ha!” Ou a duríssima constatação empírica: “Mostre-me alguém que está cheio de preocupações e problemas, e eu lhe mostrarei alguém que, seja lá o que for, não é pessimista”.
E, para terminarmos esta brevíssima ascensão para fora do inferno: Chesterton, que nos piores momentos se sentira pender sobre o abismo suspenso apenas por um “fio fino de gratidão” ao cosmos, faz agora de maneira plena a descoberta dessa atitude, que passará a ser um dos aspectos centrais do seu caráter. “ENTARDECER: / Aqui morre um dia / durante o qual tive olhos, ouvidos, mãos / e esse enorme mundo ao meu redor. / Amanhã começa outro. Por que me são concedidos dois?”
O resultado desse processo foi que, ao nascer o novo século, ele estava “pronto”; de fato, a partir do lançamento do The Defendant (1901) até o The Coloured Lands (póstumo, 1938), encontramos sempre o mesmo Chesterton. Com isso não quero dizer que não tenha nem escreva sobre idéias sempre novas, ou que não renove continuamente os seus meios de expressão (chegou a escrever algumas peças de teatro, participou do projeto natimorto de um filme, deu palestras radiofônicas pela BBC, etc.); mas sim que encontraremos em todas as suas obras a mesma maturidade de estilo, a mesma lucidez de raciocínio e a mesma penetração poética. Nem a conversão definitiva nem a velhice alteraram qualquer coisa nisso.
O mais moderno dos modernos
Durante a celebração dos funerais solenes de Chesterton na basílica de Westminster, o pregador, Ronald Knox, definiu-o como “profeta numa era de falsos profetas”. A qualificação era verdadeira no mais literal dos sentidos que usualmente atribuímos a essa palavra: Chesterton tinha previsto a primeira guerra mundial, os problemas que viriam do tratado de Versalhes, a segunda guerra, a perseguição aos judeus, etc., em momentos em que todos se alinhavam com o falso otimismo da tchurma do deixa-disso. Mas era verdadeira sobretudo em outro sentido, aquele em que o profeta tem de ser sinal de sanidade mental e de retidão moral num mundo em perpétuo estado de “desconcerto”, para usar a expressão de Camões.
Se o estado habitual dos homens e da sociedade é de pernas para o ar, será preciso pôr-se de ponta-cabeça para ver as coisas como são. Essa atitude vital de ir contra a corrente provoca por sua vez, como é natural, a incompreensão e a rejeição dos contemporâneos; será considerado — o tema é clássico — louco ou criminoso.
Essa experiência aparece em outra das obras tardias de Chesterton, Four Faultless Felons (1930). Ali descreve cinco personagens considerados criminosos, mas que na verdade são os únicos justos (um hedonista ascético, um assassino que salva uma vida, um charlatão honesto, um ladrão altruísta, um traidor leal). É ainda o tema da reversão danteana que já vimos, mas agora enxergado não através da experiência pessoal, e sim da percepção alheia: “Passamos do pior para o melhor — diz um personagem –, assim como se vai para o Ocidente através do Oriente; e há de fato um lugar no fim do mundo onde o Oriente e o Ocidente são um só. […] Será que você não percebe que há algo tão assustador e desenfreadamente bom que tem de parecer mau?”
Além de serem “sinal de contradição”, o profeta e o filósofo (no sentido socrático, não no acadêmico) têm como missão contemplata aliis tradere, transmitir aos outros as verdades que enxergaram, e desta forma fazerem-se “médicos” dos seus contemporâneos. Podem tratá-los porque têm muito em comum com eles. Gabriel Gale, o poeta de The Poet and the Lunatics, percorre o mundo a curar diversos tipos de malucos: o homem de negócios dominado pelo ideal da “eficiência”, o libertário anti-limites, o cientista cientificista, o solipsista, o defensor da arte pela arte, o fanático da razão… E, quando por sua vez é acusado de louco, reconhece: “Passei por quase todas as formas de tolice infernal. Esta é a única razão da minha utilidade neste mundo: ter sido todos os tipos de idiota”.
É natural que parte da missão do profeta consista em denunciar o erro e o mal, e assim encontraremos em alguns dos grandes ensaios — como What’s Wrong with the World (1910), The Superstition of Divorce (1920), The Outline of Sanity (1926) ou Eugenics and Other Evils (1922) — uma crítica extremamente lúcida dos extravios da modernidade. Também artigos e as obras propriamente literárias lidam muitas vezes com isso.
Tomemos apenas um exemplo desses diagnósticos de enfermidade, muitas vezes sensacionais. Quando li pela primeira vez, há muitos anos, o artigo “How I Found the Superman”, de Alarms and Discussions (1910), pareceu-me uma das poucas tolices que já tinha visto entre os escritos de Chesterton; mas, ao relê-lo recentemente, fui obrigado a mudar radicalmente de opinião.
O artigo é, como tantos outros, uma breve parábola. Narra como “Chesterton” teria descoberto, em um subúrbio londrino de classe alta, o famoso super-homem anunciado por Nietzsche no Assim falou Zaratustra e amplamente divulgado na Grã-Bretanha pelos escritos de Shaw e Wells. Seus pais pertencem aos “dois tipos mais elevados da nossa civilização: Lady Hypatia, a socialite que se dedica a proteger os pobres de si mesmos, e o Dr. Hagg, o famoso cientista radical que defende o extermínio dos fracos e inaptos. Ao entrevistá-los, o jovem jornalista percebe que só obtém descrições vagas (como as que Nietzsche faz do seu ser superior anunciado; e em geral os diversos utopistas quanto ao futuro que prometem): o super-homem “estabelece os seus próprios padrões de juízo”, “não se enquadra em nenhuma das categorias que conhecemos”. Tomado de impaciência, invade o quarto onde se encontra a nova criatura, mas tudo está às escuras; ouve apenas um “triste ganido” à sua frente e um duplo grito atrás de si, seguido pelas recriminações desesperadas do grande cientista: — “Viu só o que fez? Você o expôs a uma corrente de ar, e agora ele está morto!”
À primeira vista, tudo isso parece de uma ironia pueril, sem pés nem cabeça. Mas, ao reler agora esse texto, lembrei-me com um choque que passamos as últimas décadas educando os jovens para serem super-homens nietzscheanos — desde a infância, estão além do bem e do mal e todos os seus caprichos são lei; estudam nos melhores colégios, fora os cursos de alemão e balé; fazem religiosamente a sua academia e alimentam-se cientificamente. E o resultado é que, ao invés de serem os arrogantes senhores dominadores que Nietzsche prognosticava, são pobres escravos da sua fragilidade: não têm amigos, fogem de casar-se, pelam-se de medo de ter filhos, refugiam-se na internet ou na casa da mamãe até os quarenta anos. Ou seja, sucumbem à mais leve brisa de realidade.
Noutro artigo da mesma época, Chesterton tinha escrito: “O sentimental, de maneira geral, é o homem que quer comer o seu bolo e ao mesmo tempo conservá-lo. […] Esta é a sua essência: procura desfrutar de todas as idéias sem a sua seqüência, e de todos os prazeres sem as suas consequências” (Alarms and Discussions, 1917). Como via no super-homem uma imaginação sentimentalóide, via também que os efeitos produzidos pela aplicação desse sonho à realidade seriam bem distintos dos esperados por Nietzsche & cia. É o que vemos quase cem anos depois.
O artigo termina, como aponta Borges, com uma nota grotesca: “Ao afastar-me naquela noite, vi homens de preto levando um caixão que não tinha forma humana. O vento uivava ao alto, agitando as árvores […]. ‘É o universo inteiro, disse o Dr. Hagg, chorando porque se frustrou o mais magnífico dos seus nascimentos’. Quanto a mim, porém, pareceu-me que havia uma risada no gemido do vento”.
De fato, esse elemento é uma cicatriz da crise pela qual Chesterton passou ao atingir a maturidade. Mas o grotesco talvez se possa definir como o trágico superado pelo cômico; e, de fato, ao lado do realismo de que vimos falando, a segunda característica de G.K.C. é o senso de humor, a percepção de que “a comédia humana sobrevive à tragédia humana” (ILN, 10.02.1906); e, mais ainda, de que todo homem maduro e são traz “uma tragédia no coração e uma comédia na cabeça” (Tremendous Trifles, 1909).
A combinação desse riso invencível com a crítica em regra da modernidade levou e leva alguns a classificá-lo — com essa superficialidade que já comentávamos no começo — como um mero conservador. Mas a verdade é justamente o oposto: muito longe de ser tradicionalista, Chesterton é o mais moderno dos modernos. Talvez seja, de fato, o único pensador que realmente pensou a modernidade até o fim.
Como prova disso poderia dizer que é radicalmente democrático; e que entende a democracia no seu sentido mais profundo, não como mero sistema de governo, mas como o estado da sociedade que permite a cada um — realmente a cada um, também aos integrantes do “povão” — atingir a sua realização. Ou que é revolucionário, isto é, adere a esse princípio da revolução que pautou os últimos séculos; mas que, novamente, não entende a revolução como mera mudança da utopia dominante, e sim como uma revolta não sangrenta do ser humano contra o mal do mundo — o próprio, antes de mais nada, depois o dos outros.
Mas penso que ficar nisso seria superficial, pois na verdade essas coisas são secundárias e derivadas. O que está por trás delas é o que a modernidade tem de mais nobre e mais constante: a paixão pelo ser humano, pelo “homem comum” que é o tema chestertoniano por excelência. O homem comum: não o ser humano abstrato das utopias, mas cada homem na sua concretude.
Talvez seja num dos seus primeiros romances que a síntese de riso e razão, símbolo e amor fique mais clara. The Napoleon of Notting Hill (1904) é uma das obras menos conhecidas e menos compreendidas de Chesterton. Nesse livro, o recém-eleito rei Auberon Quinn, “para quem tudo é uma piada”, divide Londres em uma série de bairros com uma espécie de autonomia feudal; e vê-se arrastado a uma guerra entre bairros por Adam Wayne, pensador “para quem tudo é um épico”, que leva essa brincadeira a sério. Mas, perto do final, Wayne diz a Quinn:
“Sei de uma coisa que resolverá esse antagonismo, uma coisa que está fora de nós […]. É o ser humano eterno e sempre igual o que resolve esse antagonismo, pois o ser humano, esse homem comum a quem meros gênios como você e eu só podemos venerar como a um deus, não vê nenhum antagonismo real entre o riso e o respeito. Quando chegam dias escuros e monótonos, você e eu somos necessários — o puro fanático, o puro satirista. Entre nós, remediamos um grande mal: erguemos as cidades modernas àquela poesia que todos os que conhecem a humanidade sabem ser imensamente mais comum que o lugar-comum. Mas num povo sadio não há guerra entre nós, pois não passamos das duas metades da mente de um homem ao pé do arado. O riso e o amor estão por toda a parte. As catedrais, construídas em eras em que se amava a Deus, estão cheias de estátuas grotescas e blasfemas. A mãe ri continuamente do seu filho, o amante ri continuamente da sua amada, a mulher do marido, o amigo do amigo”.
Mas o personagem em quem confluem da maneira mais plena os diversos arquétipos chestertonianos e que ao mesmo tempo melhor encarna a concepção que ele tinha de si mesmo é Innocent Smith, de Manalive (1912). Criança, louco, poeta e santo, cria ao seu redor, continuamente, uma atmosfera de “crise cômica”, que no entanto cura aqueles que têm contato com ele. Por outro lado, como o seu sobrenome indica, não passa de um homem comum. É uma figura que na literatura só se pode comparar ao Príncipe Myshkin, do Idiota de Dostoievski, um yuródivy, “louco de Deus”, segundo a tradição ortodoxa russa; e, na tradição sapiencial do Ocidente, a um Diógenes ou ao “tolo sábio” ou “louco sagrado”, que encontramos entre os poetas e na entranha de todo o cristianismo.
E, já que falamos dos seus livros pouco lidos e menos compreendidos: no seu último romance, The Return of Don Quixotte (1927), Chesterton de certa forma resume também a sua missão, talvez um pouco à maneira de um testamento. “Cervantes pensava — diz um dos personagens — que o romantismo estava morrendo e que a razão devia tomar o seu lugar. Mas eu digo que no nosso tempo a razão está morrendo, no mesmo sentido; e que a sua senilidade é menos digna de respeito que o velho romantismo. Quanto a nós, precisamos recorrer ao ataque mais simples e direto. Aquilo de que precisamos hoje é alguém que acredite em combater gigantes”.
É curiosamente simbólico. A era moderna abriu-se com a imagem ficcional do cavaleiro lunático que percorre o mundo a combater falsos gigantes e criminosos imaginários; e encerra-se agora com a figura de um outro D. Quixote, este real, que combina em si o espírito visionário e poético do cavaleiro andante com o realismo (e o formato físico) de um Sancho Panza. O “cavaleiro da triste figura” encarnava o ideal da nobreza poética corroído pela razão. Gilbert Chesterton, o legítimo herdeiro da era do racionalismo, percorre esse novo mundo do espírito a enderechar tuertos y deshacer agravios, mas desta vez apontando para a poesia que está no fundo de toda a realidade: a poesia do Amor che muove il Sole e le stelle, como diz il Dante.
Henrique Elfes é editor e professor.
[1] Para liquidarmos a questão das referências: a fim de não encher o artigo de notas de rodapé, menciono entre parênteses o título de cada obra e o ano em que foi publicada; se se trata de um artigo não recolhido em alguma coletânea, a abreviatura do nome do periódico em que foi publicado e a data de publicação. As abreviaturas que aparecem aqui são: ILN, Illustrated London News; GK, G.K.’s Weekly; TL, The Listener; TS, The Speaker. A tradução de todas as citações é do autor deste artigo.
Procurei usar apenas fontes próximas do próprio Chesterton: Hilaire Belloc, On the place of Gilbert Chesterton in English Letters (Sheed and Ward, Londres, 1949); Cecil Chesterton, Gilbert K. Chesterton — A criticism (John Lane Company, Nova York, 1909); e a primeira biografia, póstuma, de Maisie Ward (Gilbert Keith Chesterton, Sheed and Ward, Londres-Nova York, 1944), que é caótica, mas é uma mina de informação; tirei dela todas as citações que não têm referência própria. Usei também Jorge Luis Borges, “Sobre Chesterton”, em Otras inquisiciones (Obras completas, v. 2, Emecé, Buenos Aires, 2007), excelente diagnóstico parcial, e Edwin Slosson (Six Major Prophets, Little, Brown, and Co., Boston, 1917). Cito-as, daqui para a frente, apenas pelo sobrenome do autor.
A melhor e mais completa edição das obras de Chesterton em inglês é a da Ignatius Press (Complete Works, San Francisco, 1986–1992), que já está parcialmente esgotada. Em português, começa a haver edições novas de diversas obras, graças ao trabalho da Sociedade Chesterton Brasil. Pode-se encontrá-las em www.sociedadechestertonbrasil.org.
Quase todas as obras maiores e muitos ensaios e poesias soltas de Chesterton, além de diversos artigos e obras antigas sobre ele, estão no excelente e criterioso site de Martin Ward, www.cse.dmu.ac.uk/~mward/gkc/books. Fac-símiles das edições originais de muitas dessas mesmas obras podem ser encontrados no Internet Archive, www.archive.org. Também são interessantes os sites da American Chesterton Society, chesterton.org, e do Chesterton Institute da Seton University, www.shu.edu/catholic-mission/chesterton-about.
Quanto a biografias, também há mais de uma dúzia em inglês, das quais foi traduzida a de Joseph Pearce, Sabedoria e inocência. Vida de G.K. Chesterton (Ecclesiae, Campinas, 2017). Recomendo também Michael Ffinch, G.K. Chesterton (Hodder&Stoughton, Londres, 1986).